sexta-feira, 6 de março de 2015

BONÉ


Olá Olá!

Já disse que adoro José Luís Peixoto?

Gosto muito.

Por tudo e mais um pouco por isto:

BONÉ
"Na loja, julguei que estava perante uma oportunidade. Com esse entusiasmo, levei-o à caixa e paguei-o. Diante de todas as vantagens que propunha, pareceu-me barato.
É raro colocar um chapéu na cabeça sem me sentir ridículo, mas não foi essa a impressão que tive com aquele boné. Achei-o confortável e, sem exagerar, acreditei que eu era aquela pessoa ou, pelo menos, aquela era a pessoa que eu queria ser. Quando cheguei a casa, no entanto, comecei a duvidar.
Nunca vi um escritor com um boné como aquele. Depois de muita reflexão, inclino-me a concluir que nunca houve um escritor que usasse um boné como aquele. Quem sou eu para achar que posso fazer o que nenhum outro fez? Se eles, tantos e tantos, durante séculos, tomaram a decisão unânime de não usar um boné como aquele, algum motivo sólido os terá apoiado. Quem sou eu para contrariar essa sabedoria acumulada?
É permitida a publicidade. O poeta Alexandre O'Neill fez alguns slogans muito conhecidos, que não estou a conseguir lembrar agora, e o Fernando Pessoa também teve qualquer coisa a ver com essa área. O álcool é permitido: Faulkner, Carver, Hemingway, Capote, Scott Fitzgerald, citando apenas alguns exemplos americanos.
O boné não é extravagante. A questão não é essa. A extravagância é permitida. Dentro de certos parâmetros, a extravagância é uma qualidade apreciada, necessária mesmo, faltariam páginas aqui para citar todos os grandes exemplos.

Agora, culpo a música da loja, a baralhar-me o discernimento, culpo a fraca iluminação, certamente propositada, e culpo o pequeno espelho em que me pude ver. O boné está ali, sobre a mesa, e não consigo saber como cheguei a achar que um escritor poderia usá-lo. Camilo, Eça, Torga ou Saramago com um boné como aquele seriam uma caricatura de si próprios. Peço humildes desculpas por sequer sugerir essa imagem.

Ainda assim, realmente grave seria a ofensa aos leitores. Com toda a probabilidade, se me vissem com esse boné teriam a leitura dos meus livros arruinada. Como poderiam aceitar conhecimento ou lirismo vindos de um indivíduo com um boné como aquele? Não podiam. Seria uma incongruência flagrante que, com toda a certeza, destruiria qualquer relevância que pudesse existir nas obras que escrevi e escreverei, seria como uma praga de térmitas.

Os leitores não têm culpa das más escolhas dos escritores e, como tal, não devem pagar por elas. Possuem todo o direito de esperar que os escritores se comportem dentro daquilo que é legítimo e, se decidirem surpreendê-los, o que também é permitido, que o façam de modo aceitável.

Fumar cachimbo, por exemplo. Repare-se que não há qualquer voz de oposição contra escritores que fumem cachimbo, pelo contrário. No caso de estarem em lugares onde seja interdito fumar, podem mesmo raspar aquela cinza preta, sem que ninguém lhes dirija qualquer repreensão. Cada escritor que não fuma cachimbo é um ingrato perante as expectativas que o rodeiam. E o blazer? Que mal tem o blazer? Tomara outras pessoas, noutras áreas de atividade, contarem com essa aceitação para com uma peça que ninguém se preocupa em verificar se está lavada ou não. Aliás, é mesmo desejável que o blazer não esteja lavado. Os leitores têm todo o direito de não imaginar os seus escritores preferidos a fazerem máquinas de roupa, a escolherem o detergente, o amaciador ou a determinarem a temperatura da água. Não faltam opções e regalias ao escritores. São artistas e, se quiserem, podem pentear-se raramente. Dispõem de uma variedade de penteados que, na sua maioria, não estão ao alcance de empregados de escritório ou de funcionários que lidem com o público. Além disso, se forem adeptos do rigor, podem até usar os penteados dos ditos funcionários.
Os escritores não têm razões de queixa. Não faltam roupas e possibilidades ao seu alcance. Com a exceção, claro, daquele boné.
Boné? Eu disse boné? Peço desculpa, enganei-me. Quando disse boné, queria dizer: piercings, tatuagens, responder a questionários de verão, ir a programas televisivos da manhã, folhear revistas cor-de-rosa na bomba de gasolina, ir a festivais de música e cantar em voz alta, ter página no facebook, comer cachorros quentes na roulotte."
José Luís Peixoto, in revista Visão


Magnífico. Adorei

Usemos o nosso BONÉ, sejamos nós próprios, sejamos felizes.

Bjocas,

Floripa Alentejana

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